segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Legados e profecias no julgamento eleitoral



Analisar politicamente este ano de 2010 convém, antes, rememorar alguns quadros passados. Segundo Emir Sader, a população radicada da partipação política viu nas frestas da democratização seu esboço primeiro do ato voto. Desta insinuação, gerou para si o contraste modernização versus atraso, assimilado da figura jovial que até então não lhes oferecia contrapartidas - com a colaboração dos interlocutores. Conservada a simpatia dos comunicadores em geral, perdendo algum tanto do viço modernista, Fernando Henrique Cardoso foi contemplado como uma nova razão cerebral aos desafios inflacionários - além dele, claro, ser um pouco negro, nordestino ou qualquer outra pintura bonita. Sem esquecermos que a exuberante financeirização americana da década de 90, que socorreu os investidores internacionais em época de lucros retraídos, produziu um efeito em onda, perpassando quase que por inteiro o continente latino-americano. Não é de se admirar que o Consenso de Washington promovesse muito mais louvores do que críticas construtivas; abraçar seu receituário não era tanto um risco, principalmente quando se tem engatilhados os meios de comunicação e uma atividade política incipiente.



Na esteira da crise do governo peessedebista, Lula ao assumir, já emendando diversas concessões desde a Carta aos Brasileiros, freara em parte a tendência neo-liberalizante da economia, colhendo seus espólios justo na área social, o maior dos dividendos anteriores. Para tanto, deslocará recursos e discursos para a geração de empregos, investindo contra a "sucatização" das estatais e iniciando uma macro-rodada de infra-estrutura - apesar de mais servir de sinalização para investimentos privados do que um investimento completo. Aprofundando os sistemas de transferência direta de renda com a audácia que somente a herança esquerdista poderia prover, pôde conjugar - não por isto somente - desenvolvimento
econômico com social como nenhum dos candidatos prévios fora capaz - e este é o seu trunfo, mais a frente melhor comentado.

A parte que não lhe coube frear foi a dívida pública. Ao contrário, a rolagem da dívida - eufemismos a parte - acrescida de juros elevados fizeram do governo petista omisso nas questões financeiras. Melhor seria classificá-lo como cúmplice de um processo que inclui a robustez dos bancos que atuam no território, injetando cada vez mais dinheiro na economia para ser renegociado em função destes interesses bancários. O fato é que esta conjuntura propicia o estrangulamento da pequena e média indústria, a maior dependente do capital que se vai nos juros. O governo Lula, não obstante, navega num céu de brigadeiro, beneficiado pelo contraste na criação de empregos, o crescimento da China e a relação crescente entre os dois países, as entradas abertas no mercado estrangeiro e o largo sorriso na face da mais bela narrativa democrática dos últimos tempos. Ele próprio é seu argumento.





Portanto, deve-se inferir que, longe do alardeado na mídia, é verídica na agenda pública a imponência do consumo e do emprego sobre, por exemplo, a educação, deficitária e sem impacto tão imediato no pleito quanto os quesitos anteriores. Fora a segurança, que é um item dúbio de temor e realidade, o que se cristaliza como sério ponto fraco deste governo é a saúde, outra área parcialmente capitulada pela manutenção da dívida nos atuais moldes. Politicamente, deve ser diluído no espírito de progresso sócio-econômico que o país se imerge, o zênite da administração petista. Contando com balança comercial superavitária - sem sequência na balança de pagamentos -, ascensão real das classes D e E e consumo sky-rocketing que retroalimenta a arrecadação do Estado, o trunfo petista vai muito além da demagogia e do poste.

Isto não quer dizer que em projeções futuras este modelo escape de armadilhas. Sem a comparação de 94/98, a geração de empregos pode não ser tão abundante e a indústria pode não estar lá para sustentar o crescimento. Pior ainda, a educação pode não ser suficiente para abastecer o mercado e se transformar num empecilho monstruoso para a economia. (Afinal, este governo também se caracterizou pelo afrouxamento com os bancos.). E convenhamos: alguém vai ter que assumir o filho do colapso do sistema de transportes, onde os investimentos são tímidos! Mas a opinião fica na vitória sem muitas turbulências da situação, que encurralou a oposição sedenta do legado alheio: desenvolvimento social combinado a desenvolvimento econômico. O PT cumpre assim parte de sua profecia política.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Pra frente, Brasil! Dramaturgia político-esportiva

A cartilha do "bom jornalismo", nivelada pelo borboletear da audiência, definiu esta copa (como a tantas outras) como alavanca da trivialidade misturada ao reflexo de pátria. Se por um lado temos a turma do riso fácil, produzindo as matérias da novela esportiva, d'outro ecoa a perigosa onda do espírito nacional, tal e qual os idos de setenta (...pra frente Brasil!).

Do primeiro exemplo, é apenas lamentável que o entretenimento extra-campo ande superando os momentos lúdicos suficientes de uma partida de futebol. A ânsia pelo furo, a nica pela polêmica são tantas vezes os latidos da moralidade, ora bem-humorada, ora censurando um ou outro comportamento. Talvez seja preciso apontar que o espectador, lhes sendo avesso, poucas oportunidades teria de esquivar do rídiculo - sintonizando, quem sabe, se possuir acesso, a ESPN Brasil. Mas, sinceramente, talvez não seja. A magnitude do esporte é tanta, tanto nos oferta (e ofertou) enquanto brasileiros, que produtor e espectador, reciprocamente, estabeleceram que o futebol está para além do futebol. A catarse está implícita ao drama, no enredo fantástico e irreversível que prolonga-se até uma das metas ser violada: eis aí seus protagonistas, seus heróis e nada mais salutar que a reverência ao belo espetáculo - não tão belo ultimamente, verdade seja dita. Não é necessário conhecer suas regras: este é o pacto entre seleção e sociedade, da felicidade que insiste e desdenha de suas razões. (Afinal, felicidade tem vida própria e depois de nascida, anda com as próprias pernas). Dito isto, intrigas, farpas e tropeços são não mais que componentes teatrais, morais ou não, onde inclusive a imprensa desempenha seu papel - e o público, atento, também.

Fato é que o aconchego da bola no braço de Luís Fabiano implorava a vírgula de Maradona e sua mão de Deus. O que diria agora o hermano sobre o gesto adversário, ou melhor, seu próprio? Sairam na frente as emissoras que já haviam desenhado com cores fortes a zombaria e agora puderam usufruir do que há de mais antigo no futebol: a rivalidade. Esquecem-se alguns profissionais que jornalismo feito no Brasil ou em qualquer outro país pode - e deve - encarnar os anseios natais. Entretanto, esta licença poética tomada ao profissional não abriga as famigeradas generalizações que, na boca de alguns locutores, torna-se combustível para inflamar a opinião pública e "rankear" índices de audiência. As tensões emanadas do campo não se referem em nada ao trato de uma nação com outra; suas origens talvez remotem de desentendimentos históricos, mas certamente será infeliz aquele que associar um jogo que abusa do choque corporal com a verdadeira face de um intercâmbio cultural!


A onda, no segundo exemplo, é simples: cria-se a injunção da identidade nacional, aquele mesmo eixo que serviu de suporte ao consenso civil pós-64, deslumbrando os brios de uma coletividade intermitente. Uma coletividade que se dissolve no instante do apito final, sem memória, baseada na crise da representatividade: onze homens dentro de quatro linhas despolitizadas, fazendo "política" em nome de milhões. Vendendo arquétipos magros e falsos, produtos que serão comercializados entre mentes e corações. A inversão sobre o que de fato é o Brasil por sua fisionomia esportiva é, no mínimo, psicologia barata, de salão de cabelereiro; toda a complexidade do pensar uma nação esvazia-se num ato único. E, para a alegria de muitos, simultâneo ao pleito nacional. A coincidência não se restringe as épocas, como também encontra-se no ato.

O esporte na história foi plataforma política para o sucesso de modelos nacionais. Nazistas não hesitaram em mascarar gênero na busca de resultados. Americanos e soviéticos apelaram a suas imagens, emulando a bipolaridade da Guerra Fria nos seus quadros de medalhas. Hoje, chineses investem nas competições internacionais, fazendo frente ao vencedor da contenda anterior. Estes excessos estéticos são os exemplos da vinculação política ao esporte e que no Brasil não será deixada de lado. Nossos "guerreiros" encaixam-se na mesma intenção - um tanto menos ambiciosa que os mencionados - de reproduzir no campo o paradoxo da composição teatro e política, emergindo o leviatã, o monstro da paixão que por todos é admirado. Este é o prenúncio da cobertura política desta eleição.

O espreitar da moralidade simboliza o trato dado a política no jornalismo brasileiro, apartada de seus motivos sistêmicos. Raça, decência ou lucidez faltará, segundo os interlocutores, a algum partido ou político. Cedo ou tarde, repetirá-se a ladainha "popular" que diz da política o palco dos pecados, picadeiro de más intenções. Algo se dirá do Estado absoluto, semelhante leviatã agindo em nome do povo. No entanto, pouco ou nada se dirá sobre o fato de voto não ser gol e que o jogo político não termina na urna eletrônica. A coletividade cidadã, aquela que vota, discute, manifesta, apóia ou faz greve não se reduz a sazonalidade quadrienal e liberdade é uma palavra que se reinterpreta nas diferentes classes. Pois o Estado democrático é tudo o que uma seleção não pode ser: a expressão da diferença. Não é um jogo de emoções rasteiras.

Esta, sem dúvida, foi e provavelmente será a cartilha utilizada por jornais, televisões, rádios e sites: recriar a tradução esportiva no escopo político. Ainda estão por vir muitas brincadeiras das tragicômicas figuras que apresentam os espetáculos futebolísticos; amanhã serão substituídos pelos cronistas políticos. A puerilidade continuará em par com a pátria, a pátria em paz com seus defeitos - para a tristeza dos nus da UnB. Recorda-se, por último, do filme "Pra frente Brasil", de Roberto Faria: Jofre (personagem principal interpretado por Reginaldo Faria), um homem comum de classe média, acaba engolido pelo frenesi de um governo insano e assassino. Morre nos porões da ditadura, tendo como trilha sonora de sua agonia a marchinha dos noventa milhões. E hoje: quantos Jofres ouviram os berros de Galvão?
Obs.: ao leitor Prestes João aviso que esta é minha primeira postagem, portanto não espere requinte visual a altura - ou a baixeza - deste humilde texto. Noite pr'ôces!
André Salomão, 23/06/2010